Duas respeitáveis palmeiras ornamentam
o portão, ao lado uma placa explicativa: "Comunidad
del Sur, comunidad ecologica integral". Retornamos depois
de cinco meses; no Uruguai estamos no meio do verão,
o efeito das cores dos campos é intenso. Para quem ainda
tem nos olhos a monotonia do inverno, os tons de verde bem como
as hortas e as ordenadas cultivações impressionam.
A paisagem é variada e entre as árvores se entrevêem
o conjunto central de alvenaria, as habitações
de dois andares e o salão para os encontros. Os edifícios
mais recentes são um exemplo de arquitetura biológica,
os muros externos em palha e terra. A comunidade surge na extrema
periferia de Montevidéu, imersa em um anônimo bairro.
A perder de vista, baixas construções em pré-fabricado
bruto e tetos de zinco. A começar pelos lixões
abusivos, os sinais de degradação são evidentes.
Ruben fundou a comunidade com um grupo de universitários
muito antes que em Berkley disparassem as fatais centelhas.
Corria o ano de 1955 e o primeiro núcleo surgia ao lado
da cidade velha, no então popular "Barrio Sur".
Daquele tempo o grupo sofreu muitas modificações,
apareceram novas gerações, a sede foi mudada mais
de uma vez. Os anos da ditadura viram a Comunidad del Sur resistir,
sofrendo uma forte perseguição que a levaria a
um longo exílio na Suécia. Com os anos 90 advém,
ainda contracorrente, a retomada de uma experiência única
sob muitos pontos de vista. Encontramos Ruben em uma pequena
oficina, que descobrimos ter recentemente hospedado um seminário
ecológico. Ao lado, uma exposição da Nordan
Ediciones, a editora da comunidade. Conversar com ele significa
arrancá-lo do incessante toque do celular e da série
de compromissos que, como todos os dias, o deixará ocupado
até tardas horas da noite.
Qual foi o seu primeiro contato com o anarquismo?
É difícil de responder, porque se perde na memória.
Creio que a faisca inicial está ligada ao encontro com
o movimento estudantil. Tinha 15, 17 anos e freqüentava
o Segundo Grau. A relação aumentou quando comecei
a participar ativamente. Tenho, além disso, uma lembrança,
era muito novo, que se confunde com os ecos dos acontecimentos
da Espanha. Daquilo que, na época, foi chamada "Guerra
Espanhola", depois "Guerra Civil" e, enfim, fui
conhecer como "Revolução Espanhola".
Esta mudança de nome implica uma interessante evolução
interpretativa.
Como era o mundo libertário dos anos 50?
Os centros universitários eram lugares vivos: encontro,
confronto, mas também diversão. Éramos
jovens estudantes entre os quais alguns, como eu, trabalhadores.
Comecei a trabalhar bem cedo, 12 anos, e ainda não parei...
Fato que me levou a adquirir uma visão diferente da realidade:
estava em condições de manter-me e gerir minha
vida. A busca de autonomia fez com que meu encontro com o anarquismo
fosse muito intenso. Queria conhecer, saber. Não tenho
uma origem intelectual; os meus pais eram trabalhadores, agricultores
expulsos da Espanha, entre outras coisas, pelo militarismo.
A minha experiência está ligada à vida de
bairro, como mais tarde, ao grupo estudantil no qual encontrava
meus amigos. Eu era uma prova viva da estreita ligação
que unia, naqueles anos, os estudantes ao movimento operário.
Entre o final dos anos 40 e o início dos 50, os movimentos
libertários tiveram uma grande adesão no Uruguai.
Os anarquistas tinham influência nos sindicatos autônomos,
que se inspiravam no sindicalismo revolucionário, em
oposição aos reformistas. A nível estudantil,
operário e de bairro éramos orgulhosos de militar
fora dos partidos. As nossas organizações expressavam
posições independentes, o que nos conduzia à
elaboração de uma cultura própria, a uma
busca centrada nas formas associativas. Começaram a ser
criados ateneus populares, escolas livres, cursos de todos os
tipos. Conjunto que exprimia uma forte energia e que ia envolver
a vida de jovens que, como eu, debruçavam-se à
vida social. Comecei a aproximar-me do teatro, das artes plásticas.
Contatos que preanunciaram o ingresso na Escola de Belas Artes.
Naquele momento me dei conta da relação existente
entre criação plástica e criação
social. Da possibilidade de fazer da própria vida uma
obra de arte. Não se tratava de filiar-se mas de colocar-se
em jogo. Tínhamos claro que não existiam modelos.
Como para um quadro, uma escultura, uma música, também
para a criação social era necessário criar
novos caminhos, superar a repetição de formas
instituídas e tediosas. Volta-me a mente aquilo que Malatesta
escreveu a respeito da livre experimentação...
Especialmente na Europa, no final da Revolução
Espanhola, generaliza-se a crise do movimento anarquista. Das
suas palavras parece-me que no Uruguai a evolução
foi diferente: como se desenrolaram os fatos no período
seguinte, até a chegada da ditadura?
O que você me diz me faz pensar: nós, efetivamente,
recebemos uma imigração qualificada. Os libertários
que chegaram da Espanha tinham sido precedidos pelos exilados
do fascismo, entre os quais, Luigi e Luce Fabbri. Exilados que
encontraram no Uruguai um ambiente favorável, fértil,
que logo produziria sementes. Por outro lado, a Revolução
Espanhola alimentou nosso imaginário. Cantávamos
"Hijo del pueblo", "Negra tormenta", "A
la barricada"; o entusiasmo havia nascido pelo encontro
com pessoas que haviam lutado por suas idéias. Isto deu-nos
uma grande força.
O evento fundamental em relação à evolução
subseqüente foi a Revolução Cubana. O "guevarismo"
representava, na realidade, o oposto daquilo em que acreditávamos.
Mais que uma revolução animada pelos movimentos
populares, mais que o método autogestionário,
desenvolvia o mito do grupo heróico. A insurreição
transformava-se em uma apoteose animada por figuras excepcionais:
"pais da pátria", "pais da revolução",
"pais do socialismo". Nós, ao contrário,
não queríamos pais; queríamos ser pais
de nós mesmos. A Revolução Cubana, embora
merecesse nosso apoio como reação a uma ditadura
sanguinária, polarizou a opinião das pessoas.
Acabou tornando-se idéia prevalente que a mudança
deveria nascer da ação de poucos armados, os quais,
subindo sobre a Sierra Maestra, libertariam o povo. Interpretação
que negava o heroísmo da vida cotidiana, mas que ganhou
muita força e teria alimentado as guerrilhas latino-americanas.
No caso uruguaio, inspirou os Tupamaros, que nós, todavia,
víamos com simpatia e com os quais, em alguma medida,
colaboramos. A sua lógica em todo caso levava ao enfraquecimento
das instâncias de autonomia do corpo social para focalizar-se
em formas estrategicamente eficazes. Estavam convencidos de
serem os únicos que poderiam provocar a mudança.
Assim, vimo-nos em uma situação com poucas saídas:
"se tivermos má sorte, seremos derrotados; se tivermos
má sorte e vencermos, seremos derrotados do mesmo modo".
Visão que nascia da consciência de estarmos de
fronte a processos que se traduziriam em novas estruturas de
dominação.
O mito do Comandante, do Líder Máximo, do
Pai da Revolução: dinâmicas que representam
a antítese da visão libertária de intervenção
social. Como explicar o fato que muitos anarquistas identificassem
um modelo na Revolução Cubana?
Os anarquistas são pessoas como as outras, influenciáveis.
Penso em Foucault, particularmente na reflexão sobre
a 'tecnologia de si'. Muitos companheiros, apesar de sustentar
a idéia da democracia participativa, estavam envolvidos
nos mesmos valores do - ainda Foucault - 'poder pastoral'. A
sociedade seria um rebanho conduzido pelos sábios em
direção ao bem. Sábios estes que conhecem
o sentido da história e da ética. No imaginário
cristão, a auto-percepção negativa está
muito presente: 'sou um pobre ser pecaminoso e para redimir-me
necessito de alguém que me ajude a conhecer-me, estabeleça
para mim uma penitência e me liberte'. Este pensamento
sobre a interioridade traduz-se em um modo particular de entender
as relações. A Revolução Cubana
era interpretada como o advento dos apóstolos que teriam
resgatado a humanidade. Alguns anarquistas pensaram que era
o momento de unir-se a eles: identificaram-se com os pastores.
A idéia da divisão entre dirigentes e dirigidos
gera um equívoco de base. As pessoas são levadas
a perguntar-se "quem pode nos fazer o bem?", sem agir
em primeira pessoa. A Revolução Cubana, creio
como a Revolução Russa, ocupou este espaço.
"As idéias anarquistas são interessantes
mas é necessário acelerar a história: não
se pode perder este trem". Na Revolução Espanhola
foi necessário, ao contrário, acelerar o trem
"fazendo" a história. Mas a história
fazia-se realmente com as pessoas, com os sindicatos. Ocupando
fábricas e terras, criando coletividade. Tudo isso, todavia
também naquele momento, aconteceu através da ocupação
do poder. Creio que isso tenha proposto novamente a dúvida
fundamental dos libertários: manter uma linha antiautoritária,
aceitando seus riscos, ou aderir à lógica do compromisso?
A Federação Anarquista que tínhamos criado
no ano de 1955 viveu plenamente este conflito. Nos dividimos
entre aqueles que pensavam ser necessário seguir o caminho
'pastoral' e nós, convencidos de que a autogestão
não se pudesse decretar. Alguns começaram a pensar
que no processo fosse imprescindível a insurreição
armada das vanguardas. A mudança foi gradual e, sob a
influência do "guevarismo", acentuou-se a instância
de deixar a direção mais estruturada. A federação
deveria centralizar-se, mesmo que isso fosse contra sua alma
federalista. Isto destruiu tudo.
Para nós tratava-se de armar processos baseados em uma
concepção ética e de inseri-los em um movimento
vivo, procurando contaminar a sociedade. Destes pressupostos
nasceu a Comunidad del Sur. Tínhamos a intenção
de concretizar os ideais de igualdade e sociabilidade em um
espaço liberto. Um espaço no qual experienciar
as idéias que ainda hoje nos inspiram quando falamos
de anarquismo.
E vocês conseguiram realizar este objetivo de criar
um espaço liberto e que liberte?
Conseguimos em alguns momentos. Hoje sei que é impossível
manter no tempo e em um mar de autoritarismo níveis tão
radicais. Em seguida a luta entre gestão direta e estrutura
de dominação agravou-se. Como diria Luigi Fabbri
"aumentou a tensão entre ação revolucionária
e ação contra-revolucionária". A ditadura
militar foi uma expressão desta luta. A idéia
da tomada de poder para a realização da sociedade
livre e a idéia da conservação violenta
do poder assemelham-se no mecanismo de uso. Assim, o que é
negado é o processo de criação social.
Processo que, não creio, algum grupo guerrilheiro possa
apoiar já que seu método e suas condições
são de dominação e gestão vertical.
A revolução está em outro lugar. A revolução
está na mudança das relações humanas.
A comunidade nos tempos melhores representou um espaço
onde realizar o melhor que unidos podíamos exprimir.
Os resultados eram incertos, porque a autogestão não
pode garantir nada. Não servem 20, 1500 ou 7000 Che Guevara;
é necessário um outro tipo de pessoa. Trata-se
de um processo de construção diferente. Em relação
à arte, Picasso foi único. Na arte africana, todavia,
os Picasso não emergem. As pessoas têm necessidade
de ter um objeto bonito entre as mãos e isto é
suficiente para criar. Até não ocorrer uma profunda
mudança cultural nenhuma comunidade ou sindicato conseguirá
estabilizar um espaço liberto e que liberte. Isto porque
as criações anarquistas, sejam grandes ou pequenas,
nascem inatuais. Nascem prematuras, contracorrente e sem possuir
anticorpos que lhe assegurem a sobrevivência. Desenvolvem-se
em um ambiente contaminado que gera um constante perigo de destruição.
A comunidade é um laboratório para a revolução
onde se realiza, se falha, se reconstrói. Nascem idéias
e experiências, mas as experiências degeneram-se
e é necessário estar prontos para regenerá-las.
O processo autogestionário necessita ser incessantemente
ajustado à situação contingente; creio
que as palavras-chave sejam "autonomia" e "criatividade
permanente".
Este discurso reporta à celebração
do 45º aniversário. Falamos da tendência de
fazer da comunidade um mito, colocando os companheiros que aí
vivem em uma situação difícil. Qual é,
no seu ponto de vista e nas várias fases, a real contribuição
que conseguiste estabelecer ao exterior da comunidade?
Creio que tudo seja dialético: a comunidade, como qualquer
realização, debate-se entre a possibilidade do
novo e a resistência do velho. No grupo, como no interior
de cada pessoa e no ambiente onde a experiência se desenvolve,
ocorre o conflito. Uma nossa idéia fundamental refere-se
à aspiração à uma sociedade na qual
a propriedade seja superada. Falar em "propriedade coletiva"
é para nós uma contradição: os bens
da natureza devem estar à mão de todos, distribuídos
através de formas organizativas criadas coletivamente.
Vivemos com orgulho o fato de termos conseguido manter o livre
acesso aos bens fundamentais para a vida. Pegava-se aquilo de
que se necessitava para comer, era-se dono das máquinas
para a produção, dos instrumentos educativos para
os filhos. Na comunidade não se encontravam formas de
propriedade pessoal: tanto no político quanto no econômico.
Vivi esta situação concretamente experienciando
o quanto a propriedade seja um impedimento às livres
relações humanas. Um outro aspecto que me parece
significativo refere-se àquilo que chamamos de "paternidade
compartilhada". A comunidade realizou neste sentido
uma experimentação aprofundada e muito rica, que
mudou de caráter mais vezes no tempo. Procurávamos
criar uma alternativa enquanto para nós parecia que,
sobretudo a família nuclear fosse um instrumento de transmissão
da dominação. A comunidade com as próprias
formas de educação favorecia o livre processo
de desenvolvimento da personalidade infantil e a superação
dos papéis fixos dos pais.
Você pensa que os resultados destas experiências
foram realmente comunicados ao exterior da comunidade?
Não é freqüente a sensação
de que os outros compreendam. Depende da real disponibilidade.
Sinto a resistência a aceitar o discurso sobre a propriedade,
porque as pessoas que nos observam querem ser proprietárias.
Querem fechar-se na própria família, sem buscas
maiores no que diz respeito a uma educação alternativa:
o sentimento mais profundo de resistência a mudanças
refere-se exatamente à propriedade dos filhos e à
"Sagrada Família". Resistência que
se manifestou também em nosso interior. Este discurso
está conectado com a fé no amor livre e com as
questões que esta põe. Se as uniões se
fundam sobre o afeto recíproco ou, antes, sobre as propriedades,
os compromissos, os filhos em comum. A propriedade enfraquece
a potencialidade de relação das pessoas, aumentando
os riscos de continuar juntos por amor às coisas em comum
ou aos filhos como extensão de nós mesmos. Dinâmicas
que caiam por terra na prática cotidiana da vida comunitária.
Incompreensivelmente, ofereceram-se-nos pouquíssimas
ocasiões para falar de nossa experiência. Os anarquistas,
que deveriam ter sido nossos interlocutores naturais, demonstravam
pouco interesse. A pergunta "o que acontece com um grupo
de seres humanos que compartilham as propriedades?" podia
ser colocada a respeito de uma tribo amazônica. Nós
sentíamos necessidade de confronto, mas nem mesmo nas
conferências internacionais conseguimos focalizar o discurso
sobre a relação humana.
Paradoxalmente a pergunta a respeito do amor livre foi feita
pelos militares...
Sim, é um paradoxo. Os militares sabiam de nosso grupo;
e, estando eu em suas mãos, pensaram de aproveitar para
matar algumas curiosidades. As suas expectativas a respeito
do amor livre eram meramente pornográficas. O que, todavia,
não é uma visão rara. Sobretudo os homens,
parecem convencidos de que em uma situação comunitária
poderiam realizar todas as suas tendências. Ficam com
água na boca... Era já tarde da noite, não
sei que horas eram porque estava em isolamento. Apresentou-se
à porta da cela um grupo de oficiais; pediram-me para
vendar-me e entraram. As mãos amarradas, escuridão
total, começaram a fazer insinuações a
respeito dos costumes da comunidade. Depois pediram-me para
falar do amor livre. Respondi com uma segunda pergunta: "Vocês
conhecem alguma forma de amor que não seja livre?".
Criou-se um pesado silêncio. Pouco tempo depois, um seco
"boa noite" e saíram.
Você falou da família, como se existisse apenas
aquela tradicional. O último artigo de Luce Fabbri tratava
deste tema. Então, viver o anarquismo na família:
para você é uma aberração ou uma
potencialidade?
Esta discussão com Luce tem uma longa história.
Penso ser possível que um casal com características
muito particulares consiga criar um espaço libertário.
Em geral o amor apaixonado dura pouco. Quando nós pensávamos
a uma alternativa, não nos referíamos todavia,
tanto ao prazer individual quanto à função
de transmitir cultura às novas gerações.
Criar uma cultura centrada na solidariedade e na autonomia como
valores básicos.
Deixe-me entender: você está dizendo que na
realidade Luce falava da sua família, colocando-a como
paradigma?
A família é atualmente o lugar onde se perpetuam
os mecanismos de dominação. A sua estrutura é
incompatível com a necessidade de abrir-se para funções
sociais amplas e com o processo equilibrado de desenvolvimento
da personalidade infantil. Atualmente, e em geral, a família
é um foco de violência.
Como era a sua família de origem?
Era uma família como aquela de Luce Fabbri. Rica de relação,
comunicação... Penso que meus pais tivessem um
projeto individual que coincidia com um projeto coletivo. Um
modo harmônico de enfrentar a vida e educar. Mas isto
foi mais uma casualidade que o reflexo da norma. A comunidade
foi a tentativa de criar um espaço alternativo à
família repressiva sem se colocar em contraposição
a outros modelos. Mas as pessoas não estão acostumadas
com o fato de que alguém saia dos percursos dados, nem
à gestão das conseqüentes contradições.
Recebemos duras críticas e também em nosso interior
formou-se uma forte oposição. Se, todavia, durante
as assembléias o clima ficava tenso, se nos confrontávamos,
no fim se colaborava porque era necessário garantir a
vida. A livre experimentação é aceita pela
sociedade somente a nível técnico científico.
Quando um grupo decide organizar-se e educar os próprios
filhos em uma forma alternativa deparam-se com muitíssimas
dificuldades.
Referente ao "que fazer?", não são importantes
as respostas unívocas, quanto à prática
de busca. Se cada um se colocar a questão, serão
inventadas mil formas e percursos e obter-se-á uma grande
riqueza de soluções. Para nós a família
é uma estrutura limitante. Comparada com a comunidade
comporta pobreza de modelos: um pai e uma mãe com os
quais se pode estar mais ou menos de acordo. Além disso
agora o mecanismo travou-se: a família está em
crise. Os jovens não têm mais referências,
não têm modelos para imitar ou descartar, assim,
aderem aos padrões ditados pela mídia. Nós
sempre pensamos que se deveriam garantir as condições
para um pleno desenvolvimento das potencialidades humanas. A
comunidade poderia oferecer uma pluralidade de modelos dos quais
as crianças teriam alcance para construir a própria
personalidade.
Falamos da família tradicional e da família
harmônica, concluindo que esta última representa
uma exceção. Deste ponto de vista pode-se afirmar
que também a comunidade harmônica represente uma
exceção. Um exemplo é fornecido pelos problemas
dos filhos da "contestação". A maioria
das experiências comunitária nascidas na Europa
e nos Estados Unidos concluíram-se desastrosamente. Se
o problema da harmoniosidade é posta também para
a comunidade, pode-se afirmar que esta, em relação
à família, possua potencialidades maiores?
A comparação é árdua porque refere-se
a realidades com histórias muito diferentes. A família
demonstrou, como modelo, os próprios limites e as próprias
potencialidades. Por outro lado o fato que um casal hippy tenha
vivido 5, 6 ou 11 anos com outros não demonstra que tenha
amadurecido uma experiência educativa comunitária.
Tratam-se de pequenas experimentações, trechos
de vida das pessoas. Em relação às diferenças
parece-me interessante o exemplo dos filhos de casais separados.
Se no interior da comunidade os pais biológicos interrompiam
o relacionamento pessoal, a criança era sustentada pela
riqueza de vínculos e relações que aquela
vida comportava. A estrutura social na sua totalidade não
era comprometida e ela podia seguir no próprio nicho,
com os mesmos valores e segurança econômica. O
mesmo fato em uma família nuclear teria se revelado uma
tragédia. A idéia de um processo de socialização
implica em tempo de desenvolvimento adequado. Os teóricos
com os quais nos confrontamos frisavam como se podia falar de
"filhos de experiência autogestionária"
na terceira geração.
Neste sentido, não lhe parece que na vida de bairro
ou de vilas, enquanto exista uma sociabilidade forte, desenvolvem-se
formas de paternidade compartilhada?
A paternidade compartilhada sempre existiu. Os meus pais, que
viviam em um pequeno burgo da Espanha, possuíam muitos
valores em comum com aqueles que nós, conscientemente,
tentamos aplicar à comunidade. A prioridade às
relações que acontecem em uma sociedade em escala
humana não é compatível com a vida das
grandes cidades, centradas no anonimato. Nós nos perguntávamos
qual seria a dimensão e a tipologia de uma comunidade
que seriam adequados a permitir uma experiência social
autogestionária. A dimensão do bairro e da vila,
em sintonia com Kropotkin, revelavam-se como uma possibilidade.
As metrópoles são mais aptas à visão
fascista, porque produzem violência e assim favorecem
a emergência de administrações verticais
e militares. Se queremos outra coisa devemos inventar âmbitos
de vida que rendam concreta a perspectiva autogestionária.
A Comunidad del Sur, como pequeno grupo, não pode ser
o modelo. O modelo é uma comunidade de comunidades.
Voltando à história recente do movimento:
como enfrentou e quais foram as conseqüências da
ditadura?
Gustav Landauer sustentava que a ditadura representa uma resposta
a uma situação que ameaça a forma social
instituída. A ditadura no Uruguai deixou clara a fraqueza
dos anarquistas, e dos movimentos sociais em geral. Não
tivemos a força de resistir, não apenas pelo caráter
do inimigo, mas também por carências organizativas,
contradições e contraposições internas
à frente de oposição. Não conseguimos
elaborar uma resposta e sofremos as conseqüências.
Disso o cárcere, o exílio: o objetivo do inimigo
tornou-se eliminar-nos. Naquela fase, mais profunda se demonstrava
a capacidade de resistência, mais duras eram as ameaças.
O movimento com a ditadura sofreu muito e reduziu-se a fracas
formas com instáveis vínculos com outros grupos.
Com o retorno à democracia assistiu-se à plena
retomada dos partidos tradicionais. As forças populares
adotaram estratégias de compromisso que enfraqueceram
seu potencial revolucionário.
Quando a ditadura começou a decair, a esquerda estava
disponível para negociar a transição: a
esperança de uma mudança social acabou. Como na
Espanha, a frente manteve-se unida, e com certa força,
até o momento em que foi necessário combater.
Depois os partidos concentraram-se sobre a eminente gestão
dos negócios de poder. Os anarquistas mantiveram uma
posição crítica mas não conseguiram
incidir como haviam feito nos anos 50.
Em síntese, o movimento saiu muito enfraquecido da
ditadura...
Sim, muito enfraquecido. E paradoxalmente o processo agravou-se
com a queda do muro de Berlim. Não obstante os anarquistas
nunca tivessem aderido ao mito da ditadura do proletariado,
o movimento não conseguiu emergir com uma visão
própria. Deixamo-nos levar pela confusão. Na fase
atual as idéias libertárias, todavia, estão
presentes no pensamento de muitos teóricos e na ação
dos movimentos sociais.
Num mundo onde a divisão internacional do trabalho
e o processo de expansão do mercado parecem ter chegado
à apoteose, quais perspectivas tem o humanismo anarquista?
Estou muito perplexo: a situação não parece
levar para o bom caminho. Todavia, creio que exista matéria
útil para a mudança social: as pessoas são
levadas a colocar em questão a realidade. À diferença
de outras épocas, quando nós éramos considerados
loucos, agora parece evidente como a loucura pertença
a esta realidade. O aumento do medo das conseqüências
do desenvolvimento tecnológico, da manipulação
genética, é um fato positivo. Positivo porque
nos leva a perguntar como sair desta espiral.
Montevideo - Buenos Aires
Massimo Annibale Rossi
Tradução: Desirée Tibola
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