rivista anarchica
anno 30 n.266
ottobre 2000


Luce Fabbri

Brincando no colo de Malatesta, isto é, "é suficiente o cheiro do poder para corromper".
Conversa com Luce Fabbri

 

"Eu era pequena, tinha apenas cinco anos, mas trago comigo a nítida recordação deste homem de barba espessa que, vindo uma noite a nos visitar, passou horas a brincar com nós crianças. Trazia de presente um brinquedo de montar. Tinha, naquele mesmo dia, saido da prisão. Chamava-se Errico Malatesta." Luce está feliz ao nos contar: trechos de uma existência que mostram-se mais empolgantes do mais empolgante romance. Escuto-a, eu mesmo enlevado, procurando não perder as nuances desta voz flébil que parece vir de muito longe.
Conheci Luce Fabbri pelos seus escritos, mais precisamente durante um trabalho de pesquisa a respeito dos primeiros tempos de "Volontà", os anos heróicos da fundação e da tentativa de relançar o movimento na Itália. A segunda guerra tinha recém terminado e os anarquistas retornavam das prisões e dos exílios que por mais de vinte anos fizeram com que ficassem longe. Também Luce pensou, naquele tempo, em voltar pelo mar fazendo o sentido inverso ao que já fizera, "mas a saúde… ". Um companheiro, conhecido em sua casa, comentando o primeiro encontro entre eles, no final dos anos 30, relembrava: "A achamos incrivelmente culta e profunda, mas comia como um passarinho e era pálida e magra fazendo-nos pensar que não viveria por muito tempo". Luce completou noventa e dois anos.
Dos escritos daquela época chamavam atenção o traço decidido e penetrante, a determinação a subtrair-se às categorias do inevitável lugar comum, mesmo que libertário. Nas longas tardes que passei debruçado sobre a revista, procurava o fio de Ariana que ajudasse a me esquivar dos emaranhados da reconstrução historiográfica, a extrair daquelas vozes sugestões para um futuro possível. E a respeito do futuro e de um despertar à vida de tantas existências sonolentas e insípidas, daquele tempo para mim tão distante, desejava falar com Luce.
O discurso iniciou, na verdade, em Milão, na redação de A. Despedia-me de Paolo Finzi às vesperas de partir para o Brasil e involuntariamente comecei a despejar sobre seu incansável ativismo o veio cético e indefinido que há algum tempo me atormenta. "Os anarquistas me parecem muito conformados com seu fascinante passado. A vida, os novos fermentos estão na estrada; diferentes e mutáveis, mas reais", dizia eu, e no expressar aquele sentimento de insatisfação e também de dor deixava lugar para um amigo disposto a compartilhar. "Não serve realizar novas tentativas de categorização daquilo que é, ou melhor, parece ser,"libertário". Os movimentos jovens são por natureza incomprensíveis e muitas vezes contraditórios. O Hip-hop é um exemplo, um leque de paixões e desejos que, cotidianamente, em todas as partes deste velho planeta, apesar dos Albertini, faz-se ato". E aqui, sob o olhar mais inquieto de Paolo, a pedra no lago: "Os anarquistas deveriam, a meu ver, deixar um pouco de lado as suas maravilhosas arquiteturas teóricas e 'sujar mais as mãos'…". Dexei escapar.
Paolo aconselhou-me refletir, definir melhor meu pensamento e escrever sobre ele. Depois, poucos dias depois, o banho de poeira, gritos e barricadas desta presente e vivíssima America Latina. O cheiro azedo das ditaduras dos anos 80 por trás dos inexplicáveis compromissos dos políticos das "renascidas" democracias. Sem Terra, Zapatistas e movimentos indigenistas. Rostos e palavras, mas acima de tudo um agir distante anos luz do fideismo monolítico dos tristes bolsceviques. Deparar-me com os anarquistas uruguaios nas avenidas de Montevideo, uma manifestação de 70.000 pessoas a indagar: "Donde estan los desasparecidos?".
E mais uma vez Luce: "Estou contente porque isto que está acontecendo confirma que tínhamos razão. No Uruguai, como em qualquer lugar, a esquerda aproximou-se do poder perdendo as características originárias, adquirindo as características que, desde quando surgiu, combatia nos outros. É suficiente o cheiro do poder para corromper. Penso aos revisionistas anarquistas, tipo Machno com a sua plataforma ou, na Italia, Padaian, orientados para a tomada de poder 'por um período brevíssimo' necessário para completar o salto. Nós não devemos aproximarmonos do poder".

"Todavia, na gestão de qualquer estrutura emergem um carisma, algumas capacidades, alguns líderes …".

"O importante é sentir dentro que [o poder] não o quer. E disto estou certa, por mim mesma e pelos companheiros que conheço; claro, podem existir os mais fracos. Não se pode garantir por todos."

"Qual é a diferença entre o prestígio reconhecido ao líder de um grupo e o poder?".

"Somos seres humanos, não possuímos uma defesa, uma couraça interior que nos proteja de nossos impulsos. Trata-se de um processo; pequenas liberdades e concessões, coisas até mesmo imperceptíveis. Não acontece que de repente nos percebemos autoritários. Pequenas exceções: você está seguro de si, mas exatamente porque se sente seguro pode chegar a fazer outra, e mais outra concessão. Você está preso em uma engrenagem. Começa a se dizer: "Não é o momento: se perco o poder acontece...". E então: 'ainda não, ainda não'. E uma vez após outra, se escorrega: creio que há uma grande diferença entre o exercício do governo provisório e dizer 'não quero o poder', mesmo na condição de sofrer aquele de outra pessoa. É melhor ter um pé sobre a cabeça do que ter o próprio pé sobre a cabeça de outro."

"Você está pensando na revolução espanhola?"

"Estava pensando naquilo, na Federica Monteseny e em sua reflexão. Os anarquistas passaram pelo poder um pouco teoricamente...".

"Enfim, eram ministros..."

"Eram ministros, mas não podiam fazer muito...".

"Talvez mais na Catalunha..."

"Sim, eu penso que quem teve poder e o exercitou foi Santillan. Santillan era muito, muito anarquista, mas houve um momento em que, na Catalunha, os anarquistas prevaleceram. A CNT era muito potente e Santillan seu representante... O ministério dos quatro foi um grande golpe que recebeu o anarquismo contemporâneo e não foi grave para Federica que estava no ministério da Saúde, onde alguma coisa de bom pode-se fazer. Mas de Oliveira que tinha a Justiça..."

"Estou entendendo que, na tua opinião, os anarquistas não deveriam ter aceitado".

"Estava-se em guerra, uma razão muito forte. Franco estava ganhando, os companheiros estavam sendo encurralados no sul; se as coisas não tivessem mudado, logo seriam obrigados a concentrar-se em Alicante, na tentativa de embarcar. Eles convenceram-se que para não perder a guerra seria necessário agir daquele modo. Os juizes da situação eram eles, não certamente quantos ficaram confortavelmente em casa. Todavia, continuo convencida de que não deveriam ter aceitado."

"Vem-me em mente uma parábola de Ghandi sobre a necessidade de cumprir compromissos com a própria consciência quando se trata de evitar grandes males. Se na minha cidade eu vejo o açougueiro sair, ameaçadoramente, com uma faca de seu açougue, deverei tentar para-lo. E se este, fora de si, começasse a ferir e a matar pessoas, para para-lo deverei realizar um ato violento (admitindo que consiga). Deste ponto de vista percebo a esterilidade dos dogmatismos e aprecio a escolha. A coerência absoluta pode levar à paralisia de ação, à indolência..."

"O exemplo da votação parece-me emblemático. A repugnância ao voto, para os anarquistas, transformou-se em dogma. Nós não queremos delegar a nossa soberania, queremos exercitá-la diretamente, todavia, às vezes convém que a votação tenha êxito. O importante é não ser candidato, mas votar ou não votar, não vejo no que praticamente influencie."

"És uma grande herética..."

"Em geral, não voto, mesmo assim, já votei uma vez."

"Eu, em vez, voto, fazendo os anarquistas se horrorizarem, mas voto em função do mal menor."

"A refutação do voto é um prejuízo; creio que nós não somos partidários do mal menor: 'ou tudo ou nada'. Mas, em geral, não se consegue nada quando se quer tudo."

"Na história recente do movimento, penso na tentativa de Masini, de candidatar-se às eleições administrativas, presenciam-se contraposições muito duras, ações que cheiram a excomunhão. Um outro exemplo é fornecido por Cesare Zaccaria, redator de 'Volontà' até a metade dos anos 50, quando pareceu aproximar-se do liberalismo de Benedetto Croce do qual provinha. Também naquele caso verifica-se uma série de condenações e uma sucessiva remoção. O que você pensa deste comportamento em relação aos que infringem os fundamentos do anarquismo ou que simplesmente deles distanciam-se?".

"Se um se apresenta como candidato e aceita um encargo, como anarquista cria uma confusão na mente das pessoas. É necessário tomar posição para evitá-lo e para que se respeite o significado das palavras. Mas é necessário ver mais além: na Resistência viram-se as coisas mais estranhas. Bifolchi virou prefeito de uma cidadezinha meridional."

"Também Ugo Fedeli, exilado no Uruguai, depois expulso, encontrou-se na mesma situação...".

"De Fedeli, não sabia. Foi um momento de confusão que faz parte da história do movimento; guerra, partigiani.".

"Depois da confusão, o surgimento das correntes. Como você viveu as infinitas disputas internas?".

"Eu, os individualistas, nunca os entendi. Não entendo como possam sustentar uma visão do futuro sem considerar o homem como um ser social. O homem não pode ser concebido sem a linguagem, e a linguagem é de todos e nos une uns aos outros. A linguagem é o legado? de uma sociedade, somos a convergência de tantos esforços".

"Uma pergunta um pouco provocativa: a agressividade é fruto do medo..."

"E também do desejo de poder;

"E também do desejo de poder. Mas considerando a história do movimento fico chocado com a veemência de confronto entre as facções. Se entre eles são, e foram, tão agressivos, de que têm medo os anarquistas?".

"Creio que este seja o argumento mais forte contra a possibilidade de realização da anarquia: 'se vocês não concordam nem entre si, como pode funcionar a sociedade sem autoridade?' É difícil discutir reconhecendo a boa fé do adversário, mas é o único caminho."

"Voltando ao medo dos anarquistas. Penso na "Reunião dos insensíveis", mas também nas polêmicas e tomadas de posições mais recentes. Quantos companheiros molharam a pena no veneno..."

"Quando ainda o faziam. Mas responda você que disse que é fruto do medo..."

"Talvez o desejo de prevalecer sobre a opinião do outro, de sentir-se mais fortes e seguros. Problemas de auto estima.

"Não se dão conta. Veja, nas reuniões, tão logo um fala um pouco melhor, consegue melhor convencer, assume uma posição, um papel especial e o defende. Não deixa mais os outros falarem e esta também é uma forma de poder. É inevitável, somos todos pessoas sujeitas aos nossos instintos."

"Votações, líderes, agressividade latente, medo e desejo de poder são temas transversais à tua história, quanto ao presente. O sentido do passado cai por terra se não se consegue extrair dele, como você argumentavasobre 'Volontà', um estímulo para a ação e a mudança. Coloca-se um questão fundamental: a capacidade do anarquismo contemporâneo de colher e interpretar fermentos e sinais concretos. Segundo você, os anarquistas ainda sabem escutar?"

"Eu não sei se no nosso campo tenham sido avaliadas suficientemente as mudanças da estrutura social e mais precisamente os efeitos da falta do proletariado como classe majoritária e consciente de si. ... se nos adaptamos realmente, com os nossos métodos, a una situação tão nova. Não se pode mais falar de insurreição. Tornou-se importante o pequeno passo, a vitória circunstancial. Creio estar ainda em dívida com A Rivista de uma resposta a uma entrevista que me fizeram muito tempo atrás, na qual me defini partidária das cooperativas. Estou convencida de que o cooperativismo bem intencionado constitua um passo à frente. É um sistema facilmente corrompível, acessível ás deformações de mercado, mas no princípio funda-se sobre a solidariedade e não sobre a concorrência.

"Para ti a concorrência é um desvalor?

"Em um regime capitalista está na raiz da violência; é um desvalor."

"Como julgar então a componente Experimentalista que identifica na co-presença e na competição de diferentes entidades econômicas - cooperativas, pequenos empreendedores, artesãos - uma pre-condição ao desenvolvimento do corpo social?"

"Meu pai era experimentalista, e também eu o sou. O capitalismo tanto quanto uma economia solidária podem realizar-se de diversas formas. Quando meu pai dizia 'serão experimentados os vários sistemas', referia-se de qualquer maneira ao âmbito socialista."

"Por associação direta, o tema do experimentalismo leva-nos a Camillo Berneri..."

"Se não me falha a memória, lembro que meu pai sustentava que Berneri estivesse navegando em águas perigosas, mas, principalmente nos últimos tempos, a idéia da livre experimentação o fascinava".

"Para concluir, um pensamento seu sobre os anos que nos esperam".

"Creio que a cisão entre presente e passado seja representada por Hiroshima. Tudo o que escreveu-se precedentemente deveria ser revisto a partir da morte atômica. Los Alamos recentemente roçada por um incêndio representa uma metáfora. O capitalismo, mesmo mostrando sinais de crise, é um animal duro para morrer, capaz de profundas mutações que nesta fase, a globalização, vêm piorar as condições das pessoas. Os anarquistas compreenderão a mudança em ato e chegarão a uma concepção diferente da revolução social, adequando os instrumentos de propaganda em um sentido que me parece próximo ao movimento dos Sem Terra.

18 de maio de 2000 De Montevidéu, Uruguai, para A Rivista

 

Massimo Annibale Rossi
Tradução: Desirée Tibola